Pular para o conteúdo principal

O LUTO PELA "MORTE" DAS PESSOAS VIVAS


    Todo mundo, em algum momento da vida, teve de enfrentar a morte de alguém que amava. Para mim, foi a morte da minha avó, lá em 1996. Eu ainda me lembro de vê-la deitada sobre a cama de solteiro do quarto do piano (era assim que a gente chamava aquele quarto, porque havia um piano lá, e minha avó adorava tocá-lo. Ao lado do piano, havia uma cama de solteiro coberta com uma colcha branca com pequenas margaridas amarelas), e ela estava vestindo seu vestido favorito: um vestido xadrez cinza e preto. Ela realmente parecia estar dormindo, mas eu sabia que ela tinha morrido. Lembro-me que alguém me disse isso, porque achou que me confortaria: "sua avó está dormindo". Mas eu sabia que não era verdade, então eu apenas disse "ah não. A vovó Lila morreu. Ela foi para o Papai do céu". Eu não fiquei triste com a morte dela na época, mas hoje, como adulta, sinto saudade daquele tempo onde tudo parecia mais ... "fácil". E, sim, minha avó morreu porque estava com cancer no pancreas. Esse cancer é um dos mais mortais que existem, porque quando ele "aparece" já não há mais nada a ser feito, apenas esperar pela morte. Eu não me lembro de saber sobre isso. Não me lembro se alguém me contou que minha avó estava doente naquela época. Mas eu me lembro daquele dia, mesmo sendo apenas uma criança pequena.

    Durante a minha vida, aprendi uma coisa: a morte é tão certa quanto o fato de que o sol vai nascer amanhã pela manhã novamente. Talvez as nuvens o incubrão às vezes, mas ele está lá. Ele está sempre lá. E morte nem sempre quer dizer perder uma vida. A morte significa "fim de um ciclo". A tristeza decorrente da morte é inevitável, e onde há morte sempre haverá tristeza. Mas tenho notado que as pessoas não sabem disso, e elas não sabem dizer que o que elas sentem chama-se tristeza, principalmente em relações abusivas entre pais e filhos, quando a pessoa aprende desde criança que a vida dela é triste por si só. Quando você é criado por pais abusivos, há morte por todos os lados. Você não escuta coisas como "muito bem! Você está indo muito bem!" ou algo como "eu acredito que você consegue!" ou também "você fez um ótimo trabalho. Está de parabéns!". "Elogios são para os fracos", eles pensam, "se eu sobrevivi e venci na vida sem elogios, significa que eles não são necessários". Até mesmo um "eu te amo" é raro de ser ouvido, ou até mesmo inexistente. Crescemos nos sentindo como cadáveres: um corpo oco com um "programa" mental básico de sobrevivência humana:

Acorde! 

Estude! 

Trabalhe! 

Coma! 

Tome banho! 

Durma! 

Não interaja com ninguém! Você sempre se decepcionará com as outras pessoas! 

Você é uma decepção para as outras pessoas!

Ninguém jamais te amará porque você não é digno(a) de ser amado(a)! 

Não ouse ter sonhos, projetos, ambições! Nada nunca dará certo para você! Não se esqueça: você sempre vai se frustrar, então nem tente! Apenas siga seu "programa básico de subsistência" até que a morte te alcance, e essa será a sua "vida"! 

    Parece tão duro encarar as coisas dessa maneira, mas elas meio que não deixam de ser assim. A tristeza parecer estar como que empregnada em cada célula do corpo, e cada dia a mais é um dia a menos... Maldita hora que a morte resolveu se atrasar para me levar disso que precisamos chamar de "vida". 

    No decorrer desse intervalo - às vezes, a nosso ver, muito longo - entre nosso nascimento e nossa morte, enfrentamos várias mortes: demissão de um trabalho, fim de um relacionamento (amoroso ou de amizade), troca de um campus de faculdade para outro ou uma troca de curso ou profissão, mudanças para casas, bairros, cidades, países, enfim... Estamos sempre fechando ciclos e abrindo ciclos, e nem sequer percebemos isso. E saimos de ciclos sem o concluir de forma adequada, e esse "incomodo" nos persegue para os próximos ciclos. Ficamos com os sentimentos confusos e bagunçados, e nem sabemos explicar o que estamos sentindo, e nem a origem do que estamos sentindo. E muito disso se deve ao fato de que estamos enfrentando mortes a todo momento, e não estamos nos preocupando em vivenciar adequadamente o luto por isso. 

    Eu me lembro que, quando eu era mais nova, seu eu passava por uma dessas mortes, eu nunca podia ficar triste. Eu sempre ouvia meu pai me dizer que eu precisava "colocar uma pedra por cima e seguir em frente" (sim, eu não tinha o "direito" de ficar triste pelo término do meu namoro, ou por algo ruim que alguém me disse na escola. Basicamente, a ideia era: "engula o choro e finja que nada aconteceu, nesse exato momento. Não há tempo a perder com esse tipo de bobagem".) Então me lembro que eu fingia que estava bem, mas quando eu sentia essa tristeza que sentimos, e que queima a alma, e que irrompe em lágrimas pelo rosto, e não há o que fazer, a não ser chorar, eu ia pro meio do mato, me escondia lá e chorava. Ou também tarde da noite, quando todos já estavam dormindo, e ninguém podia me ouvir. Eu não sabia disso naquela época, mas pessoas abusivas SEMPRE vão lhe dizer isso: "você não pode chorar. Se você estiver triste, então finja que você está bem. Somos 'perfeitos' e pessoas perfeitas nunca choram ou ficam parecendo estar tristes... O que os outros vão pensar? E ah, a propósito, se você estiver triste, eu vou ter que lidar com a SUA tristeza, e definitivamente, eu não quero isso, porque eu nem sequer lido com a MINHA tristeza. Trate de voltar a ser o 'robô' que você foi programado para ser e 'engula' sua tristeza!". Não que meu pai falasse comigo dessa maneira, mas era como eu me sentia, e o que eu passei a pensar que ele esperava de mim. 

    Com o passar do tempo, começamos a nos tornar insensíveis a nossa própria dor e tristeza, e naturalmente, à dor e tristeza dos outros. Por isso, pessoas abusivas são tão insensíveis, e não possuem a capacidade de serem empáticas: elas mataram seus sentimentos há muito tempo, porque eles as tornavam pessoas "fracas". Eles aprenderam a cauterizar sua própria dor, e simplesmente não conseguem (e muitos nem querem) lidar com qualquer coisa ou pessoa que se pareça com algum tipo de sentimento que foi "enterrado" dentro da mente deles. É por isso que eles se "assustam" com pessoas que, ao contrário deles, tentam, de alguma maneira, lidar com seus sentimentos, e exprassá-los, mesmo que com dificuldade. Eles sentem medo de que tudo aquilo que foi "enterrado" volte para assombrá-los, mas a simples lembrança desse "enterro" forçado dos sentimentos dentro deles lembra-os das dores que eles carregam na alma, e onde há dor, também há ira (afinal, quem consegue, por exemplo, bater o pé na quina da parede e não gritar de raiva bem alto?). A propósito, é por isso que alguns deles demonstram raiva e frieza perante nossas demonstrações de sentimentos. 

    Tenho observado isso principalmente quando ouço o relato de alguém que acabou de terminar um relacionamento (principalmente um relacionamento abusivo): um misto de tristeza, alívio, dor, ódio, medo, saudade... Como explicar o "luto"? Não é que a pessoa com quem elas se relacionavam morreu, mas com o fim do relacionamento, morreu a esperança de que a outra pessoa voltasse a ser aquela pela qual elas se apaixonaram. Infelizmente, muitas vezes, acabamos nos relacionando com personagens, e não com pessoas. Não percebemos isso no ínicio do relacionamento, mas é justamente o que acontece. É como se estivessemos assistindo a uma novela ou filme, e nos apaixonassemos por uma personagem. O ator ou atriz que interpreta aquela personagem não é absolutamente nada parecido com quem está interpretando. Muitas vezes, é o completo oposto. Aquela personagem é uma ficção, e não existe de verdade. Aquela personagem tão serena e doce, amável e bondosa pode ser interpretada por um ator mau, vingativo e cruel. Tem passagens pela polícia por agressão contra as ex namoradas, é grosseiro e odeia todo mundo. E porque ele foi contratado pra fazer aquela novela ou filme, se é uma pessoa assim tão detestável? Porque ele interpreta bem! As pessoas realmente acreditam que o ator É a personagem que está interpretando, e "compram" aquela ficção (mentira) como se ela fizesse parte da realidade. Então, quando isso acontece conosco, nos apaixonamos por essa personagem que o outro está fingindo ser. Mas ninguem consegue passar todo o seu tempo interpretando alguém que não é. O preço a se pagar é muito alto, e mais cedo ou mais tarde, todas as máscaras caem. As pessoas são como elas são, ou como elas decidem ser. Quem decidiu se abster de lidar com seu sofrimento e fugir de sua dor fará isso por muito tempo. As vezes, pelo resto da vida. E ela simplesmente não muda porque mudança implica que ela lide com ANOS de dor, sofrimento e feridas ignoradas que foram "enterrados" num lugar bem escuro e distante do subconsciente dela. Tão escondido e perdido que agora elas simplesmente nem sequer conseguem mais acessar aquele lugar. Elas decidiram que vão conviver com a pessoa estraçalhada que se tornaram, e embora elas queiram ser de um jeito diferente, não conseguem, e se acostumaram que assim será. 

    Existiu um momento na minhda vida que isso aconteceu, com os meus pais: eu tive que aceitar que eles tinham "morrido". Meus pais continuam vivos, mas aquele "ideal" de pai e de mãe que eu sonhava em ter, a "ficção" que eu havia criado, essa morreu. Meus pais são como são. Meu pai, sempre que errar e se exceder, vai fingir que nada aconteceu, porque ele não consegue lidar com aquela pessoa monstruosa que "habita" dentro dele, e fala e faz coisas que ele não gostaria de falar ou fazer. Ocasionalmente, ele vai pedir desculpas, mas não porque ele se importe em ter me machucado, mas sim porque ele não quer viver com o peso da culpa sobre si. Minha mãe sempre vai me interromper enquanto eu estiver falando, porque ela sempre "sabe" como eu vou terminar uma frase, antes mesmo de eu ter começado ela. Ela sempre vai querer se meter em algo, mesmo que não tenha sido convidada a fazer parte. Eu nunca vou ouvir deles algo como "estamos orgulhosos de você, filha!" porque eles não sentem orgulho de mim. Eles frequentemente vão esperar que eu "mude" e me encaixe em algum ideal imaginário que eles esperavam, para que eu seja a "filha troféu" e eles possam se orgulhar e "provar" a todos que fizeram um bom trabalho em mim, como meus pais. Foram coisas muito duras de aceitar, e entendo que muitas pessoas não queiram acreditar que pais simplesmente não amem seus filhos de verdade, porque esse não é o "comum" e está longe de ser o "correto", mas a verdade é que o amor não é uma obrigação, e sim uma escolha. Amor não é sentimento, mas sim um dom. Filhos deveriam vir para complementar a alegria dos pais, mas alguns pais tem filhos por razões egoistas, e muito diversas do que seria o ideal. Eu poderia dar muitos exemplos aqui, mas prefiro que apenas os verdadeiros "entendedores" entendam o que quero dizer com isso. 

    Meus pais não me tiveram para complementar a alegria deles. Meu pai não se sentia amado por ninguém, então ele imaginou que se tivesse uma filha (porque ele queria que fosse uma menina), ele iria "programá-la" para amá-lo e para suprí-lo emocionalmente. Em outras palavras, meu pai estava esperando que eu fosse a mãe dele. Hoje, como adulta, olho para trás, de posse dessa informação, e percebo quão nocivo foi esse pensamento egoista que me "gerou", antes mesmo de eu nascer. Por outro lado, minha mãe (muito parecida comigo) nunca foi "criança", mas sim cobrada para ser adulta desde que era uma criança. O pai dela eu tive o (des)prazer de conhecer, e ele era um homem tão frio, que se segurasse um pouco de água nas mãos, ela viraria gelo em poucos segundos. Me lembro, tanto quanto posso lembrar, que ele sempre nos comprimentou estendendo a mão, mesmo quando éramos crianças. Não me lembro de ter sido abraçada por ele enquanto ele viveu. Quando mais velha, eu me recusei a conviver com ele, mas imagino que o que a minha mãe passou nas mãos desse "pai" dela traumatizou ela pra sempre. E, naturalmente, ela deveria ansear por ser cuidada, protegida e amada, e como ela não encontrou isso dentro de casa, foi procurar lá fora, na vida. Então ela acabou se acasando com meu pai. Ele não é uma pessoa fria, mas é uma pessoa emocionalmente ausente, e indiferente. Eu acredito que minha mãe nem sequer queria ter filhos, mas era parte do "pacote" de se relacionar com meu pai. E eu sempre fui uma criança de personalidade: animada, curiosa, ativa e feliz. Posso falar por experiência própria que, quando você não pode ser uma criança durante sua infância, você sente muita angustia de ficar perto de crianças. Você sente uma tristeza por dentro, misturada a uma dor, ira, inveja, ódio. A mulher não quer cuidar das crianças, porque ela não foi cuidada quando criança. E eu sei que minha mãe não queria estar ali, cuidando de mim. Ela queria estar no meu lugar, sendo cuidada por meu pai. Na verdade, ela queria ser cuidada pelo pai dela... Mas quem disse que ele faria isso? O cara que cumprimentava os próprios netos com um aperto de mão? Ah não, ele jamais faria isso! E agora, aqui estou eu, sabendo de tudo isso, e olhando para meu passado, e resignificando coisas que antes eu jamais poderia entender, mas que agora eu entendo. Quanta cobrança, quanto engano, quantas mentiras, quanta dor e sofrimento se causa a uma criança que nasce partindo de um objetivo tão egoista da mente de pessoas tão doentias. 

    Entre eu ter conhecimento de tudo o que relatei e finalmente conseguir dizer "adeus, papai e mamãe" se passou exatamente um ano. Foi muito doloroso para mim saber de todas essas coisas. Ainda me doi um pouco precisar de um abraço e pedir ao meu pai, e ele se negar a me abraçar porque "ah sim, você não precisa de abraços. Abraços não vão resolver nada". Não julgo porque talvez a ele mesmo tenham sido negados muitos abraços, mas não é como se eu pudesse evitar de me sentir triste por isso. Dizer adeus a eles, e aceitar que eles não serão como eu gostaria que eles fossem fez parte do meu processo de cura e evolução como ser humano. E eu aprendi que a morte, seja lá de qual maneira ela se apresente a nós, precisa ser aceita e vivida através da fase do luto. Pessoas que não aceitam a perda que vem com a morte (ou seja, aquele final de um ciclo) não fecham o ciclo. Abrem outro ciclo, e acabam misturando sentimentos de ambos os ciclos. Tudo fica confuso e incompreensível, e a mente passa a ficar caótica com o tempo. Há coisas que simplesmente não temos controle, e não podemos evitar que aconteçam: sermos demitidos de um emprego que gostamos, terminarmos com um relacionamento que tinhamos, mudar de casa, de cidade, ou até mesmo de pais, em busca de outras novas oportunidades... Tudo isso implica em ganhos e perdas. Geralmente pensamos nos ganhos, mas nos esquecemos das perdas, então acabamos ficando ligados ao passado e ao ciclo que não encerramos. 

    Eu escrevi esse texto como forma de desabafar uma perda recente que tive, decorrente de uma dessas mortes que temos que enfrentar durante a vida. Escrever me trouxe ainda mais clareza sobre como vivenciar adequadamente esse momento e esse fechamento de ciclo. E eu realmente te encorajo a fazer o mesmo com qualquer perda decorrente de qualquer morte que você tenha passado. O passado precisa ficar no passado, porque se ele for vivido no presente, ele estraga o futuro.